Eles dizem que sou chucro, bravo feito a peste e que não tenho paciência. Mas ninguém sabe que já andei rindo à toa e muito satisfeito… até ter o coração partido. Por ela.
A infeliz. A enviada do tinhoso. Maria Rita Valente.
Ela é filha do meu patrão e me fez arrastar os chifres no asfalto. Sofri feito um condenado por um bom tempo, mas então decidi que essa coisa de paixão é para frouxo, e que o bom mesmo é ter uma longa lista de Maria Botinas disponíveis.
Só que agora, depois de viver no raio que a parta por sete anos, Maria Rita está de volta.
Quem ela pensa que é para chegar à fazenda toda cheirosa desse jeito? A miserável está querendo tirar o meu juízo, agindo toda ofendida como se eu fosse o responsável pela nossa separação. Só pode!
Mas eu sou um idiota mesmo, porque já não basta ter um tanto de coisa estranha acontecendo na fazenda, acabo desmontando toda vez que fico frente a frente com aquela diaba.
Ô, raiva!
Um peão chucro, bravo feito a peste, sem paciência…e de coração partido!
Nesse conto você encontra:
Um peão chucro
Amor de juventude
Erotismo
Cenas hot imperdíveis
Capítulo 1
Maria Rita
A minha vida inteira passa através da janela conforme eu vejo a vegetação incessante. Pastos a perder de vista, estradas de terra, vacas e cabras salpicando o verde aqui e ali. Ao longe, plantações diversas. Uma vista que deixaria qualquer um sem fôlego ante a tanta beleza, mas que a mim causa a sensação de fracasso.
De falta de escolha.
Quanto mais o carro se aproxima das terras da fazenda Valente, mais o aperto no peito se intensifica. E talvez eu estivesse demonstrando isso, pois o motorista passa a olhar de forma mais incisiva para mim, através do espelho retrovisor.
Posso até ver a pergunta se formando em seus lábios: tá tudo bem, moça?
Ignorando sua preocupação, mantenho os olhos firmes na paisagem. Na cerca alta de madeira e arame que delimita as terras de ambos os lados. É como ter flashes de uma infância até feliz, quando eu corria junto de Renato por esses pastos tentando contar o tamanho da fazenda.
“Pelo amor de Deus, Ritinha, com essas pernas curtas, a gente não vai chegar nunca” ele dizia. Passávamos horas correndo pelas redondezas, até estarmos exaustos e sujos feito gambás. Então voltávamos para casa e éramos esfregados com aquelas buchas duras, embaixo do chuveiro, até a pele estar vermelha e ardida.
Apenas para, no dia seguinte, estarmos fazendo tudo de novo.
Era uma liberdade infantil gostosa demais que, conforme íamos crescendo, diminuía consideravelmente, até Renato ter seus dias ocupados por outras obrigações e eu achar outra companhia para minhas artes, não tão inocentes.
Aperto os dedos, na inútil tentativa de estralar os nós, sentindo o coração bater mais forte no peito ao ver a placa de indicação na beira da estrada.
Fazenda Valente, três quilômetros.
O que aconteceria, caso eu tivesse me negado a vir? Vinha fazendo essas perguntas desde que recebi o telefonema arbitrário, semanas atrás. Se eu dissesse não, o que ele faria? Colocaria seus homens em meu encalço, apenas pelo prazer de me trazer contra sua vontade?
Nunca saberia, pois fui covarde. Aceitei suas ordens para voltar, ao ponto de chegar com uma semana de antecedência, sem avisar.
— Chegamos, moça — o motorista alerta, assim que paramos frente à porteira.
Inspiro fundo, tentando controlar a ansiedade e abro a porta, descendo do carro. Sou tomada pelo ar quente e seco, tão característico dessa época do ano. O sol escaldante faz minha blusa grudar nas costas, devido ao suor e agradeço à brisa, ainda que fraca, que traz o conhecido cheiro de mato.
Nunca esqueci esse cheiro, mesmo estando anos distante daqui.
Os pedregulhos em meio à terra batida reagem, naquele barulho característico de cascalho ao ser pisado, quando dou um passo para trás, erguendo a cabeça para ler o entalhe na madeira.
Valente.
A antiga porteira de madeira foi substituída por um largo portão de ferro, que forma um arco leve de uma ponta à outra. Sorrio, de forma inevitável, ao perceber que finalmente um pouco de modernidade chegou a este lugar.
— O portão está fechado, moça — o homem insiste, após checar. — Tem certeza de que é essa a entrada certa?
Apanho a mala que ele me entrega, apenas sorrindo curto. Na outra mão, o aparelho celular parece queimar minha palma, lembrando que não avisei antes que estava chegando e agora não encontro sinal para fazer uma ligação.
É até bom, caso conseguisse, talvez ele viria me recepcionar.
E não estou pronta para vê-lo.
Um trote curto chama nossa atenção, mas eu fecho os olhos. O coração, que já estava se mostrando um traidor, passa a bater cada vez mais rápido conforme o som se aproxima. Responde em meus ouvidos, bate firme na garganta, chegando a me causar enjoo. Mordisco o lábio ao sentir que o cavalo está próximo o bastante, do lado de dentro do portão, e espero.
— Dia — a voz soa com o típico sotaque goiano —, quem são ocês e o que tão fazeno aqui?
Ergo o rosto, o ar saindo lentamente do meu pulmão ao reconhecer o sujeito sobre o cavalo. Entre todos os peões que poderiam aparecer por aqui, ele era a opção mais correta, como um presente de boas-vindas.
— Não me conhece mais, não, Tarcísio?
O homem ergue a aba do chapéu, e inclina o corpo para a frente.
— Eita, Ritinha? — diz alto, o sorriso despontando no rosto. — É ocê mesmo?
Estico o braço livre, em uma mesura curta de apresentação, gesto que ele conhece bem. Dando uma risada alta, ele desce do cavalo, apressado, para abrir o portão.
— Mas minha Nossa Senhora! Venha, passe para dentro!
Peço ao motorista para me aguardar e me aproximo. O tempo realmente passou, sete anos desde que deixei Santo Anastácio, e Tarcísio agora não é mais um molecote cheio de espinhas, querendo ser peão feito seu pai. O garoto franzino e magrelo se tornou um homem, ainda que o ar travesso não tenha deixado seu rosto.
— Então deixaram você montar sem ter ninguém por perto? — provoco, batendo a mão em seu peito.
— Oxe, e por que não haveriam de deixar?
— Não sei, talvez porque você gostava de sumir por esses pastos.
— Isso era coisa de moleque — justifica com um sorriso sem graça no rosto. — Cê avisou que tava vindo?
— Não precisei — desconverso. — Agora venha aqui e me dê um abraço.
Tarcísio está muito diferente. A barba cerrada no rosto daria a ele um ar amedrontador, não fossem os olhos castanhos gentis e o sorriso aberto que ele oferece a todos. Consigo ver os cabelos por baixo do chapéu, os cachos roçando as pontas das orelhas. A camisa de sarja, surrada, já estava apertada, assim como o jeans que ele veste.
Esse menino sempre quis ser homem de confiança de Antero Lins e, pelo visto, conseguiu. Bem, ao menos ser o porteiro de confiança.
— A peonada vai enlouquecer quando te ver. Saiu daqui uma cabrita de perna fina e voltou uma moça chique demais.
— Ah, obrigada pela parte que me toca — brinco, querendo mudar de assunto. — O motorista pode entrar comigo? É um longo caminho até à sede.
Percebo o olhar analítico que ele dá para o pobre homem, antes de gesticular, permitindo a passagem do carro. Volto a assumir o banco traseiro, deixando minha mala ao lado e sinto o nervosismo voltar conforme o carro é colocado novamente em movimento, com Tarcísio galopando à nossa frente.
— Nunca na vida tinha entrado nesta fazenda — o homem diz, maravilhado com a vista. — É grande demais, não é?
— Parece estar maior do que quando a vi pela última vez.
— E faz tempo, isso?
— Sete anos. — Suspiro. — Deu tempo de crescer um bocado.
Estive acompanhando as notícias, cada conquista da Valente era noticiada nos jornais. O aumento de pastagens, a construção de uma adutora, melhoramento genético do gado. Antero Lins vinha trabalhando para se tornar um dos maiores produtores de gado de Goiás.
E isso refletia na fazenda. Na grandiosidade ao nosso redor e no casarão que se agiganta adiante, conforme o carro se aproxima. É inevitável sentir a garganta queimar ao ser invadida por lembranças, pois a minha vida inteira foi passada neste lugar. Os bons momentos, os péssimos. A minha risada mais sincera e o meu choro mais dolorido foram dados nessas escadarias e, quando o carro estaciona em frente ao pátio, preciso respirar fundo antes de saltar.
A vida não parece ter mudado muito por aqui.
Agradeço ao homem, pago a corrida e vejo Tarcísio gesticular para alguém, talvez ordenando que o acompanhe até à saída.
— Veio sozinha? — questiona, me observando subir as escadas. — Cadê o marido?
Faço uma careta descontente.
— Se Deus me ouvir, há pelo menos dez anos de distância daqui até eu me casar com alguém.
— Ara… pensei que tinha se casado?
— Não, Tatau. — Ergo a mão, balançando o anel que eu trago no dedo. Um presente de Renato e que só foi servir muito tempo depois de sua partida. — Permaneço solteira e estou ótima desse jeito.
Meu amigo parece confuso. Mexe no chapéu, balançando a cabeça de um lado a outro, antes de apenas assentir. Será que esse pessoal realmente pensa que basta pisar em outro estado para arrumar um marido?
— Ocê deu sorte, o patrão tá aqui hoje — alerta, apanhando a mala. — Ele deve estar no escritório.
Balbucio um “que sorte a minha” sem som, por conta da notícia. Pensei que teria ao menos uma semana de sossego antes de enfrentar a fera.
Quando Renato morreu, Antero decidiu que morar nesta casa era demais para ele. Passava mais tempo viajando, fuçando em suas terras no Tocantins do que aqui. Segundo ele, é mais sossegado do que essa loucura toda.
Subo as escadas atrás dele, parando no alpendre largo que toma toda a parte da frente. A mesa redonda e as quatro cadeiras de vime parecem ter acabado de ser colocadas ali, mesmo eu me lembrando vividamente de quando elas chegaram, um pedido de dona Inês. O piso, de madeira escura, brilha de tão limpo.
As janelas ainda são pintadas de azul, contrastando com as paredes brancas e todas as vidraças estão abertas, permitindo que o ar circule pelo casarão.
Dou um passo, seguindo Tarcísio, quando ele atravessa a porta dupla de madeira que está aberta e paro, segurando o estômago que parece revirar.
Por que a casa continua a mesma? Por que nada mudou?
O chão de madeira corrida é a primeira coisa que noto, por estar olhando para baixo. Escuro, lustrado, brilhoso e com uma passadeira que foi colocada para dar boas-vindas. A primeira mentira detectada.
Um aparador ao lado, com um arranjo de flores. Um objeto para colocar guarda-chuvas. Um quadro trazendo uma fotografia da Valente quando foi comprada, décadas atrás.
Nada mudou.
Tarcísio me olha apreensivo, em silêncio, já parado no meio da grande sala. Sigo até ele, observando os móveis de madeira maciça, os estofados em tons de marrom, as cortinas que caem pesadas e que, apesar disso, são as únicas responsáveis por alguma leveza na decoração.
É quando percebo a primeira mudança: todos os objetos dela foram retirados da decoração. Os vasos de cristal, as porcelanas decorativas, as fotos de família. A cantoneira lateral, um móvel que fica ao lado do piano, onde ela colocava todos os porta-retratos, está vazia.
— Onde foi parar o piano? — pergunto, andando pelo espaço agora vazio.
— O patrão vendeu, vieram buscar semana passada.
Passo o dedo sobre o móvel, impecavelmente limpo. Eu quero chorar, mas todas as lágrimas que eu poderia derramar por ela, eu derramei há três semanas.
— Ela está no cemitério da cidade? — pergunto. Tarcísio encolhe os ombros, minimamente, antes de responder.
— Foi preciso, não deixaram enterrar ela na fazenda, como ela queria.
— Quem não deixou?
— O padre — sussurra, como se contasse um segredo. — Eles nunca gostaram muito do cemitério aqui da fazenda, ele foi até desativado.
O canto maldito, é como Antero chama aquele pedaço de terra.
Assinto, levemente, e aponto com o queixo para o corredor.
— E seu patrão está no escritório?
— Tá sim. Ele disse que ficaria pouco hoje, deve estar resolvendo algumas coisas mais urgentes.
Aproximo-me dele, apoiando a mão no braço que mantém cruzado em frente ao peito, e ergo o rosto. Sequer preciso de muito esforço para alcançar sua bochecha e deixar ali um beijo amistoso. Ele sorri, encabulado.
— Obrigada, Tarcísio. Foi muito bom ser você a primeira pessoa que encontrei ao retornar. — Aponto para o corredor lateral, onde eu sei que fica a cozinha. — Adélia ainda cuida das coisas por aqui?
— Cuida, sim.
— Então peça para ela arrumar o meu quarto. Eu vou falar com a fera.
Não espero sua resposta. Caminho na direção que conheço tão bem, munindo-me de todo o resto de confiança que eu tenho dentro de mim. As costas eretas, o queixo erguido, a respiração compassada. Toda uma farsa que, por muito tempo, eu aprendi a exercer e que, por sete anos, estive livre.
Passo a passo vejo a porta dupla ao longe, no final do corredor, aumentar de tamanho conforme eu me aproximo. Vozes ditas durante toda a minha infância parecem soar outra vez em meu inconsciente. “Não entre ali, não é lugar para crianças” ela dizia.
Paraliso quando a porta se abre e uma voz alta soa, vinda de dentro do cômodo. Eu reconheceria esse timbre em qualquer lugar, porque, por anos, ele permeou meus sonhos, sendo capaz de me tirar sorrisos e lágrimas.
— Pode deixar, patrão. Vou preparar tudo para a viagem.
Ele ainda fica parado no limiar da porta um tempo, de costas, ouvindo algo que lhe é dito. Sequer presto atenção. Analiso sua altura, o porte físico que sempre chamou atenção de longe. A calça jeans que cai justa pelo corpo, a camisa escura que demarca as costas largas. As mangas dobradas até o cotovelo. Os cabelos curtos, batidos na nuca. O chapéu inseparável, seguro em uma das mãos.
Eu deveria ter saído daqui, voltado apenas quando ele já não estivesse por perto. Soube disso quando ele se virou, prestes a sair, e nossos olhos se encontraram. Meu coração para de bater, de imediato, e dou um passo involuntário para trás. Sinto-me gelada, como se a vida tivesse sido sugada para fora de mim e eu fosse incapaz de uma reação.
Ele continua perfeito. Mais velho, mais másculo, e ainda perfeito. Desço os olhos por cada pedacinho dele. O cabelo agora domado, a sobrancelha grossa, a barba por fazer. A pele dourada de sol, seu nariz longo e a boca bem-feita. A camisa aberta no colarinho, evidenciando o pescoço largo de pomo saltado.
Tudo para escapar do par de olhos, tão verdes quanto os de um gato selvagem, que se firmam em mim como se visse a um fantasma.
— Maria Rita — sussurra em um misto de susto e raiva.
Zé Irineu, eu suspiro em silêncio.
E meu coração, esse traidor que não cansa de sofrer, parece bater em seu ritmo normal somente por ouvi-lo dizer meu nome outra vez.